quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

REVISTA DA CULTURA


Nós não temos a mínima pista de como é a sociedade angolana - ou a moçambicana. Aliás, a maioria de nós deve pensar que Angola, Moçambique, Madagascar, Zanzibar é tudo a mesma coisa, não é?” Escrito em tom de autocrítica pelas autoras do blog carioca Duas Fridas num post sobre o acordo ortográfico, o texto acima é um resumo bem-acabado de como nós, brasileiros, sabemos pouco sobre a África. Em Madagascar, ilha do Oceano Índico de onde vieram aqueles simpáticos pinguins do cinema, fala-se francês. Já em Zanzibar, conjunto de duas ilhas na costa da Tanzânia, o idioma é o inglês. “A África é um planeta diferente, um cosmo múltiplo. Somente por comodidade simplificamos e dizemos ‘África’. Na verdade, a não ser pela denominação geográfica, ela não existe”, explica o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski no prefácio de Ébano, livro fundamental para entender as diferenças entre os 53 países do segundo continente mais populoso da Terra (900 milhões de habitantes, só perde para a Ásia) e o terceiro mais extenso (cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados, ou 20,3% da área total de terra firme do planeta).
Kapuscinski, morto em 2007, percorreu o território de ponta a ponta durante quarenta anos do século 20, nos quais mais de 10 mil pequenos países, reinos, uniões étnicas e federações deste lado de cá do Atlântico conseguiram se libertar do domínio europeu. Ele ainda teve fôlego para retratar o cotidiano dos nativos em A guerra do futebol, além de traçar o perfil de ditadores como Hailê Selassiê, autocoroado imperador da Etiópia de 1930 a 1974, ano em que foi deposto. Como em todo o mundo, a história se repete como farsa também na África. Robert Mugabe, no poder há 28 anos no paupérrimo Zimbábue, foi apelidado em outubro último de “O destruidor” pelo jornalista Jon Lee Anderson (o mesmo que escreveu Che Guevara: uma biografia) num perfil singular para a revista The New Yorker. Mas por outro lado, o continente-berço da civilização também deu ao mundo figuras de grande envergadura, como Nelson Mandela, o ex-presidente da África do Sul que ficou encarcerado durante quase três décadas por lutar contra o Apartheid – regime de segregação racial imposto pelos brancos –, e Miriam Makeba, conhecida em todo o mundo como “A imperatriz da canção africana”, vencedora do Grammy de 1966 pelo disco An Evening with Belafonte/Makeba, cuja voz radiosa calou-se em novembro passado durante show contra o racismo na Itália. Nas palavras do historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva, anotadas nas primeiras páginas do clássico A manilha e o libambo, “um africano de uma região pode ser tão diferente do de outra quanto um alemão de um andaluz e um húngaro de um escocês”. VAI E VEMJá que é praticamente impossível apresentar em profundidade toda a África, sua incalculável variedade linguística e sua riquíssima cultura milenar, nada melhor do que começar a entender o continente a partir da realidade de nossos parentes mais próximos. Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Guiné-Bissau são os cinco países onde oficialmente fala-se português, além de diversas línguas nacionais, como crioulo, quimbundo e ovumbo, os dois últimos ramos linguísticos do tronco banto. Em todos eles, principalmente em Angola, nação que, de acordo com um dos Sermões do Padre Antônio Vieira, formava um agregado único com o Brasil no século 16, está em curso uma revolução cultural que daqui a alguns anos certamente vai atravessar o Atlântico e talvez tenha, guardadas as devidas proporções, o mesmo impacto provocado pelo desembarque dos 11 milhões de africanos nas Américas enquanto vigorou a escravidão. Só de Angola para o Brasil foram levados mais de 4,8 milhões de cativos de acordo com os cálculos do historiador catarinense Luis Felipe de Alencastro em O trato dos viventes. Os africanos, apesar de todo o sofrimento imposto pelo degredo, foram grandes responsáveis por obras-primas da cultura mundial como o jazz, o samba, a rumba, a capoeira, o candomblé, reinventaram a cozinha dos colonizadores portugueses, ingleses e espanhóis e, no caso específico do Brasil, contribuíram para retirar os “ossos” da Língua Portuguesa. Hoje, de acordo com estimativas da Embaixada do Brasil em Luanda, vivem mais de 40 mil brasileiros no país. “Eles trabalham em empresas de construção civil, indústria petrolífera, agências de publicidade, universidades e prestam consultoria em diversos ramos de atividade”, explica a secretária Fabiana Moreira. Em média, todos retornam ao Brasil a cada três meses para passar férias de quinze dias com a família. “Será que Angola não se transformará numa espécie de 27º Estado brasileiro?”, questiona Mathias de Alencastro, filho do historiador e estudante de História que defenderá uma tese de mestrado sobre o país este ano na Universidade de Paris. Em Cabo Verde, o nome mais representativo das artes vem da música, mais especificamente da morna, um tipo de canção que mistura crioulo com português, e é Cesária Évora. Conhecida em todo o mundo como “A dama dos pés descalços”, Cesária cantou para o então presidente Bill Clinton, na Casa Branca, gravou algumas canções com Caetano Veloso e foi a grande atração internacional da mais recente edição da Virada Cultural, quando cantou no cruzamento das Avenidas Ipiranga e São João, em São Paulo, grande sucessos como “Lua nha testemunha” e “Mar azul”. A cultura Moçambicana, como a cultura africana em geral, continua a ser apenas associada ao imaginário de Tarzan, de cinema americano, máscaras e artesanato ancestral. Uma idéia enviesada que contribui para desvalorizar a produção artística contemporânea do continente. Ninguém fica indiferente após conhecer a obra de Malangatana, José Craveirinha (que em 1991, tornou-se o primeiro escritor africano ganhador do prêmio Camões) ou Mia Couto. Malangatana é um dos artistas plásticos moçambicanos mais reconhecidos internacionalmente. Mas existem trabalhos que merecem destaque, como os de: Ângelo de Sousa, João Aires, João de Paulo ou Rui Calçada Bastos. Bertina Lopes é outro nome que revela ao mundo a qualidade da produção artística da ex-colônia portuguesa, segundo a crítica italiana Paola Rolletta: "Na história da pintura, muitas vezes seu nome é posto ao lado da mexicana e grande artista, Frida Khalo. Duas vidas diferentes, mas com traços comuns muito fortes, e sobretudo com qualidades pictóricas e humanas muito peculiares". Entre os escritores, vale lembrar de Rodrigues Júnior, Guilherme de Melo, Luís Bernardo Honwana, Correia de Matos e Ungulani Ba Ka Khosa. Entre os poetas, José Craveirinha e Rui Knopfli são os mais conhecidos, mas não devemos nos esquecer de Alberto de Lacerda ou Reinaldo Ferreira. A música moçambicana também impressiona. Em 2005, a Unesco reconheceu a timbila chope, um instrumento de percussão, como patrimônio da humanidade. Na Guiné-Bissau, o clima político instável não permite que a força artística projete-se para o mundo. Há dois meses, um golpe de estado colocou o minúsculo país outra vez no noticiário internacional. Vale a pena, no entanto, conhecer a obra dos escritores Amílcar Cabral e Félix Sigá, ambas marcadas pela relação do país com o mar. Em São Tomé e Príncipe, por sua vez, duas ilhotas reunidas sob a mesma federação, faltam coisas básicas como dentistas, mas a pintura de Almada Negreiros e a música de Viana da Mota nos encantam ao primeiro contato, pois transmitem algo de ingênuo muito próximo do registrado no Brasil rural do século 19.

ANGOLA É AQUI
A população de aproximadamente 17 milhões de habitantes sabe quase tudo sobre o Brasil, desde a escalação dos nossos times de futebol, os atores e atrizes mais famosos, o nome de nossas praias, até pormenores sobre a vida de escritores como Jorge Amado, Graciliano Ramos e, claro, Paulo Coelho. “Os africanos consomem intensamente a cultura contemporânea brasileira, mas o contrário ainda não acontece”, diz o músico Fernando Alvim, diretor da Fundação Sindika Dokolo. A instituição dirigida por Alvim detém a maior coleção particular de arte contemporânea africana, organiza a Trienal de Luanda (a segunda edição está agendada para 2010) e acaba de inaugurar, em São Paulo, a Soso, primeira galeria de arte contemporânea no país. Instalada num edifício projetado por Oscar Niemeyer, na Avenida São João, o espaço exibirá, na coletânea de inauguração, trabalhos dos vídeo makers Ihosvanny e Yonamine e fotografias sobre alumínio de Cláudia Veiga e Kiluanji Kia Henda, todos referências nacionais em suas respectivas áreas. “No Brasil, a África ainda é vista como o continente da escravidão, da dor e do sofrimento, muito por causa de poemas como O navio negreiro, de Castro Alves. A abertura da galeria vai ajudar a mudar essa visão e, quem sabe, causar o mesmo impacto e estranhamento artístico que Basquiat conferiu à cena artística de Nova York nos anos 1980”, aposta Alvim. De forma geral, há um movimento organizado entre os artistas angolanos para que os seus trabalhos não sejam reduzidos no imaginário mundial a máscaras decorativas, adornos de marfim ou tecidos com geometria colorida. O primeiro passo foi a retumbante participação do país no pavilhão africano na última Bienal de Veneza, mostrando exatamente tudo o que fosse diferente de máscaras, colares e tecidos. “A ideia de que, para o século 21, a contribuição da África na história da arte mundial se reduziria ao artesanato decorativo gela-me o sangue. Ou talvez não, faz-me ferver”, escreveu o colecionador Sindika Dokolo num manifesto lançado em Luanda em 2006. Até o presidente da República, José Eduardo dos Santos, tomou para si os anseios dos artistas e, num discurso dirigido ao ministro da Cultura, fez mea-culpa por ter se pronunciado poucas vezes sobre o tema. “Minha principal atenção foi dedicada a prioridades como defender nosso território de agressões externas e manter as fronteiras estabelecidas”, justificou o homem que está no poder em Angola há 30 anos, mas se distingue dos seus homólogos pela condução da guinada do ex-país marxista à economia de mercado feita em 2002, levando a nação a ser a única que cresce a taxas de dois dígitos no continente.

NOVOS SONS AFRICANOS
Em Luanda, Benguela, Huambo, Namibe… em todas as capitais provinciais angolanas, o cenário é de caos. Centenas de gruas erguem edifícios de um dia para o outro e o que se escuta é barulho, muito barulho, tanto de máquinas pesadas como também de novos sons que tocam nos alto-falantes das candongas, um tipo de van chinesa de cor azul convertida no único tipo de transporte público existente no país, e nas caixas de sons dos quintais. Nada pode impactar mais os ouvidos do visitante do que o kuduro, um ritmo musical criado há dez anos nos Mussekes (como são chamadas as favelas com barracos de lata no local) por adolescentes procurando notoriedade, uma forma de se afirmar num país onde a justiça ainda é madrasta. As letras são de protesto, assim como no rap das favelas cariocas e paulistas, e procuram retratar os problemas de todos os dias, como a criminalidade, a prostituição, a corrupção, a falta de água e luz, a condução lotada etc. Os kuduristas mais consagrados do país são Helder, o rei; Dog Murras, o patriota; Sebem, o mais popular, e Puto Prata, o doutorado. O ritmo invadiu todos os lares, carros e festas da classe média e alta do país e começa a se tornar conhecido também no Brasil. O kuduro já foi tema do quadro “Central da periferia”, de Regina Casé, exibido no Fantástico, e tornou-se atração fixa no matutino Hoje em dia, da Rede Record, emissora que transmite a programação brasileira para toda a África lusófona. Outro ritmo muito forte é o hip-hop (que aqui se pronuncia “ip-óp”), estilo que tem no quarteto Os Kalibrados seu maior expoente. O grupo, formado por quatro jovens que se vestem de grifes famosas da cabeça aos pés, usam pulseira e correntes douradas e não dispensam óculos escuros bem fashion, já fez mais de 150 apresentações dentro e fora do país nos últimos três anos, além de abrir shows de colegas famosos ao redor do mundo, como DMX, Missy Elliot, Kanye West, Pharrell Williams e 50 Cent, este último fã confesso de Angola, mesmo tendo sido vítima de um assalto que lhe custou uma famosa correntona e um bling cravejado de diamantes durante uma apresentação para 7 mil pessoas, em abril de 2008. De acordo com o jornal O País, o álbum Cartas na mesa, lançado em dezembro, vendeu 11 mil cópias nas primeiras doze horas da sessão de autógrafos que Os Kalibrados fizeram na portaria de um cinema. Faixas como “Não deu para ser fiel” e “Bam Bri Bam” estão na boca do povo. Numa vertente mais soft, surgiu há oito meses a Next, banda que faz um som afro-eletro-acústico e que se converteu na melhor tradução musical contemporânea de Luanda. O sexteto gravou o primeiro CD e DVD em novembro e, entre uma música e outra, promove releituras dos poemas de Agostinho Neto, o homem que comandou o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), principal partido de oposição ao regime colonial português e, depois, se transformou no primeiro presidente do país, em 1975. De acordo com uma reportagem de Gabriel García Márquez publicada em 1976 na então revista Homem (que dois anos depois passaria a se chamar Playboy), Agostinho Neto, na prisão, compunha seus poemas com letras miúdas em pequenas tiras de papel e as escondia enroladas dentro de um cigarro. Às vezes, só havia dois versos em cada cigarro. Quando sua esposa Maria Eugênia ia visitá-lo, ele lhe oferecia um cigarro e ela o levava sem acendê-lo, porque sabia que era o dos versos. Em sete anos de cárcere, escreveu Sagrada esperança, livro que reúne 49 poemas.

LITERATURA E CINEMA

Nas duas últimas edições da Festa Literária de Paraty, a FLIP, dois escritores angolanos surpreenderam a plateia: José Eduardo Agualusa, autor de As mulheres do meu pai, e Pepetela, o nome de maior projeção internacional das letras angolanas, vencedor do Prêmio Camões em 1997 e autor, entre outros, de Parábola do cágado velho, uma metáfora do horror vivido por dois irmãos que têm que fazer a guerra civil em lados opostos. Tido como uma das reservas morais do país, da mesma forma que Jorge Amado foi para o Brasil, Pepetela recentemente foi homenageado e teve seu nome dado a um auditório no centro da cidade. Lá, teve lugar, em novembro, a primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Luanda. A história da sétima arte no local foi determinada, basicamente, pelo desenrolar da guerra. De 1985 até 2002, quando o conflito teve sua fase mais cruel, o cinema desvaneceu até a quase total inexistência. Em 2004, houve uma espécie de renascimento com o lançamento dos longas O herói, de Zezé Gamboa, e, dois anos depois, Na cidade vazia, de Maria João Ganga. Os documentários, por sua vez, surgiram com mais frequência, como é o caso de Angola: saudades de quem te ama, do namibiano Richard Pakleppa; Oxalá cresçam pitangas, de Ondjaki (também escritor representante da nova geração e atualmente morando no Rio de Janeiro) e Kiluanje liberdade, uma receita para curar os traumas do conflito com ginástica e ironia; Kuduro - Fogo no Musseke, de Jorge António, sobre a música/dança que tanto dá o que falar; e É dreda ser angolano, do coletivo Família Fazuma, um relato da vida dos guetos e da economia informal do país. O grande vencedor da mostra FicLuanda foi Mario Bastos, um angolano de 22 anos que mora em Nova York e rodou Kiari, a história de um rapaz que se prepara para receber um autógrafo do seu jogador de basquete preferido, mas que se desilude com a conduta do atleta. “É um filme sobre a perda da inocência patente na frase: ‘Segue o teu sonho, não sigas o teu herói’”, declarou Bastos na hora de receber o troféu. O diretor já começou a rodar, junto com o músico Keita Mayanda, um documentário sobre hip-hop intitulado O underground e o mainstream namoram em segredo. “Os autores querem trabalhar as semelhanças e o mundo secreto entre as duas correntes do estilo musical”, apontou Marta Lança, da revista Vida. “Quando se passa algum tempo em cidades como Nouakchott (Mauritânia), Dakar (Senegal) ou Luanda, o que se percebe é que tudo está em permanente mudança”, diz Pedro Pinha, um dos diretores de Bab Sebta (ainda sem previsão de lançamento no Brasil), filme que causou choque na mostra por contar as histórias de humilhação vividas por africanos na passagem fronteiriça entre Ceuta e Marrocos. Como em todo o mundo, os novos paradigmas do século 21 estão presentes na África e José Craveirinha, um de seus maiores poetas, ensina: para ser herdeiro do futuro, o passado não pode ser omitido. ©

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