sábado, 28 de fevereiro de 2009

REVISTA DA CULTURA

Tem mulher mais brasileira que aquela cujo primeiro texto literário que leu em português foi uma história de Monteiro Lobato no verso de um folheto do Biotônico Fontoura? E cujo primeiro êxtase foi ver um cacho de bananas? Escritora, tradutora, educadora, roteirista pioneira de programas de TV para crianças – e russa. Cada vez que se fala de Tatiana Belinky a toada é sempre a mesma. Mais de 70 anos de Brasil, vários prêmios, mais de cem livros escritos em bom português (entre os mais recentes estão O Cão Fantasma e Histórias de Bulka), jeito brasileiro, maroto, de viver e falar, mas russa, todo mundo acrescenta. Então não tem jeito mesmo, é pela Rússia que vamos começar.
Por Carlos Moraes

A Rússia é grande. Onde mesmo a senhora nasceu? Em São Petersburgo, que já foi Petrogrado, virou Leningrado e hoje é São Petersburgo outra vez. Uma cidade que surgiu do nada, como Brasília, com Pedro, o Grande trazendo arquitetos e artistas da Itália, da França. Meu pai estava lá completando seus estudos.

Como foi sua infância? Minha infância foi em Riga, na Letônia. A cidade é banhada pelo Rio Dángava, por onde os navios não paravam de passar a caminho do Mar Báltico. Da janela do nosso apartamento a gente via três grandes pontes, a dos carros, a dos trens e uma que os alemães construíram durante a guerra. No inverno o rio ficava congelado e pelo seu leito passavam pessoas, trenós puxados a cavalo... Na primavera, grandes blocos de gelo começavam a estourar, a explodir. Um barulho infernal, parecia um bombardeio. Um dia vi uma vaca desesperada em cima de um grande bloco de gelo a caminho do mar. As quatro estações eram dramaticamente bem definidas. Os crepúsculos eram lentos. Fui rever São Petersburgo quando fiz 9 anos. E sabe qual foi meu presente de aniversário? Uma visita ao Museu Hermitage. Nunca vou esquecer. As obras famosas, os grandes corredores, e eu ali, deslumbrada com tanta beleza.

Os livros já faziam parte da sua vida? Se faziam! Eu tinha uma estante bem provida. Nunca me lembro de mim sem livros. Meu pai lia ou me contava histórias. Aos 4 anos eu já sabia ler, primeiro em russo, depois em alemão. Em Riga, as placas das ruas eram em três línguas. Russo, alemão e letão, a língua da terra. Eu morava na Rua dos Navios.

Por que a decisão de emigrar? Por vários problemas sociais e políticos. A Letônia sempre foi um ponto de passagem. Volta e meia alguém pisava lá e tomava conta. Chegamos como imigrantes, em 1929. Sem nada. Minha mãe já era dentista formada havia dez anos, veio com seus instrumentos. Eu cheguei com uma correntinha no pescoço e um livro na mão. A correntinha tinha medalha do Moisés, o da Bíblia, que eu achava muito parecido com meu avô. O livro era do Turguêniev, de contos. Que tenho até hoje. Está ali, se desmanchando. Precioso, cheiroso. É o próprio cheiro do passado.

E a chegada ao Brasil, como foi? O navio aportou no Rio e foi um assombro atrás dooutro. Minha primeira estranheza no Brasil foi ver o sol se apagar de repente, como uma lâmpada. As pessoas todas de branco e chapéu de palha. Mas sabe qual foi o meu maior susto? Quando vi lá no porto um cacho de bananas. Em Riga a gente só via banana uma a uma, e uma vez por ano. Meu pai trazia de longe. Ela era repartida entre os três irmãos. E, de repente, lá embaixo, aquele cacho enorme. A gente não sabia nada do Brasil, o máximo que imaginava da América eram os arranha-céus de Nova York. Mas aquele cacho de banana ali solto, imenso, de vários andares... Eu disse: “mãe, acho que estamos em Cocanha, aquele país imaginário onde é tudo fácil e a comida chega do céu...” Mais tarde aprendi que o nome científico da banana é Musa Paradisíaca. Por isso acho que, no Paraíso, não foi maçã coisa nenhuma, foi banana...

Como foi sua transição do russo para o português? Natural. Criança aprende as coisas naturalmente. Mas não perdi o contato com as minhas outras línguas. Logo que nos estabelecemos na Rua Jaguaribe (SP), onde minha mãe abriu seu consultório, nós nos inscrevemos e passamos a alugar livros em duas bibliotecas circulantes, uma russa e outra alemã. Dona Eva Herz, mãe dos fundadores da Cultura, era dona de uma dessas imprescindíveis bibliotecas.

E sua descoberta de Monteiro Lobato? O primeiro texto que me caiu nas mãos foi um folheto do Biotônico Fontoura com uma história dele no verso. Era uma história do Jeca Tatuzinho. Eu tinha pouco mais de 10 anos e gostei muito, já lia em português com fluência. Mais tarde, tive um sério problema na biblioteca do Colégio Mackenzie, onde estudava. É que não me deixavam pegar os livros que queria. Só podia ler livros para – meninas! Eu tinha uns 12 anos e fiquei escandalizada. Como uma escola pode ter livros para meninas e livros impróprios? Nem sabia direito o que era impróprio, mas já não gostei. Fui me queixar para meu pai. Minha mãe era feminista e comunista, mas, nesses casos, não intervinha. O poeta e contador de histórias era meu pai. Ele foi, sentou na escrivaninha e, em bom português, escreveu dois bilhetes, um para a diretora e outro para a bibliotecária, nos seguintes termos: “Minha filha Tatiana tem a minha autorização para retirar da biblioteca os livros que ela quiser ler”. Foi um escândalo. Então uma fedelha dessas pode ler qualquer coisa? Mas como o pai era a última instância, passei a ler o que quisesse.

Dizem que até no seu casamento com o psiquiatra e escritor Júlio Gouveia os livros foram importantes. Nosso casamento foi também um encontro de nossas estantes. Tem uma história engraçada. Éramos namorados, durante o dia ele estudava e eu trabalhava, de forma que a gente se encontrava à noite. Eu morava na Rua Itacolomi e depois do jantar íamos passear ali perto, na Praça Buenos Aires. Uma noite, lá estávamos nós conversando num banco quando de repente chega um guarda e pergunta: “mas vocês são namorados mesmo?” Respondi, irritada: “somos sim, e daí? Não pode?” E ele: “não, tudo bem, é que nunca vi namorado falando tanto, vocês só falam”. E a verdade é que tínhamos sempre muito assunto. Júlio era poeta, lia livros diferentes dos meus e tínhamos muitas convergências, mas também muitas divergências. É claro que a gente não só falava, mas aquela noite calhou de ter muito assunto e as discussões foram ficando muito acesas, para o espanto do guarda.

Como começou, por volta de 1952, o trabalho de vocês no teatro? Na festa de aniversário de uma menina de 4 anos, filha de amigos. Júlio gostava muito de teatro. Ele chegou e disse: “por que, em vez de uma boneca, a gente não dá de presente um teatrinho para essa menina?”. Ele foi e adaptou um trecho do Peter Pan, reunimos os irmãos, os amigos e, na festa, apresentamos o espetáculo. Foi um sucesso. Um funcionário da Secretaria de Cultura sugeriu que a peça fosse aumentada e apresentada no Teatro Municipal, em benefício de uma escola. Outro sucesso. Naquela época, não existia um teatro para crianças. Durante quase três anos fizemos isso. Foi assim que começou o nosso Teatro Escola de São Paulo, num aniversário de criança.

E a televisão? Nosso grupo foi ficando conhecido e a TV Tupi nos convidou para apresentar algumas peças. Era um teatro meio cinema. Com três câmeras se aproximando, se afastando... O público adorou e o telefone da emissora não parava de tocar: eram pais pedindo mais programas para criança na TV. Começamos com Fábulas de Esopo, fábulas alemãs, peças curtinhas, de uns dez minutos. O nome era Fábulas Animadas. Depois de algumas semanas, a Tupi nos pediu algo brasileiro. Foi então que entrou a adaptação do Sítio do Picapau Amarelo. O primeiro foi o Júlio quem escreveu. Ele tinha experiência, era diretor do teatro amador do Sesc. No segundo espetáculo ele disse: “agora é com você”. E foi assim que virei roteirista.
O espetáculo, claro, era ao vivo. Como faziam em caso de falhas? O grupo ensaiava muito, horas e horas, às vezes até tarde da noite. Eu já tinha sacado bem o funcionamento das três câmeras, mais o som, a iluminação. Às vezes a câmara passava de um cenário para o outro. Algum problema, o que era raro, a gente simplesmente trocava de cenário. Foi tudo muito heróico e maluco durante... doze anos! E tudo sem contrato. Não queríamos que ninguém interferisse. Comerciais, só antes e depois do espetáculo. O livro, donde saía a história, era mostrado para o telespectador.

A senhora conheceu Monteiro Lobato? Uma vez, bem antes da TV e mesmo do teatro, ele nos procurou. Eu já estava casada, tinha dois filhos. Uma noite o telefone toca e uma voz meio áspera lá do outro lado pergunta: “Aí é a casa do Júlio Gouveia?” “É, quem quer falar com ele?” “Aqui é o Monteiro Lobato”. A minha reação: “Ah é? Pois então eu sou o rei Jorge da Inglaterra?” Ele riu, me explicou que era ele mesmo, que havia lido um texto do Júlio sobre sua obra e perguntou se podia nos visitar. Às nove horas tocou a campainha. Júlio abriu a porta e ele foi logo dizendo: “Na sua idade, eu tinha a sua cara”. Engraçado que o meu pai disse a mesma coisa quando conheceu o Júlio. Todos queriam ser bonitos como ele!

Como foi a visita? Conversamos por umas duas horas. Na hora de fazer o café, telefonei para meu irmão Benjamin, pedi que viesse correndo conhecer Monteiro Lobato em pessoa. Tínhamos todos os seus livros, ele era objeto da nossa suprema admiração. Tanto que Benjamin me respondeu: “Isso é hora de trote?” Depois veio correndo e ficou meio paralisado diante da figura do Lobato. Quando apertou sua mão, como que se esqueceu de retirar. Depois me cochichou: “Nunca mais lavo esta mão”.

Cinema, televisão e, agora, Internet. Que será do livro? Nada jamais vai substituir o livro. O livro é algo seu, você leva aonde quer, lê, relê, é um amigo mesmo. Nada como ele para estimular a cabeça, a imaginação. Um mesmo livro é quantos leitores ele tiver. Porque cada um deles vai entender do seu jeito. Outro milagre: em cada releitura o livro é diferente para a mesma pessoa. O livro que alguém relê aos 40 anos vai dizer coisas diferentes daquelas da primeira leitura, aos 20... Um bom livro não tem começo nem fim, é infinito.

Como os pais podem estimular a leitura? Lendo, tendo livros em casa. Criança é curiosa, graças a Deus. Se vê um livro ali, fechado, ela vai abrir. Mas tem de ter o livro. O Ziraldo diz que ler é mais importante que estudar. Porque para a criança o importante não é estudar, é aprender. E ela aprende o tempo todo. Profissão de criança é aprender, mesmo quando está brincando. Especialmente quando lê, está aprendendo.

O que é um livro bom para as crianças? Minha neta disse uma vez: “Sabe, Tati, livro que não dá pra rir, que não dá pra chorar e não dá pra ter medo não tem graça”. É isso aí.

O que um escritor de livros infantis deve levar em conta? Senso de humor é importante. E não se preocupar muito com a moral da história. Com esse negócio de isso pode, isso não pode, isso é bonito, isso é feio, isso é de menino, isso é de menina... Desde pequena gosto de fábulas, mas sempre achei que a tal moral da história é um desaforo. A boa história é a que se explica por si mesma. E se a criança quiser entender de uma forma diferente? Mais original, mais bonita, mais dela? A criança sabe tirar suas conclusões. Ética é bom, mas não deve ser imposta. Criança tem muito senso de justiça.

Dentre seus muitos livros, Coral de Bichos, O Grande Rabanete, tem um que se chama Limerique das Coisas Boas. O que vem a ser um limerique? O limerique é um estilo de verso inspirado numa cidade da Irlanda, Limerick, e desenvolvido pelo poeta Edward Lear. São cinco linhas, três versos rimando, o primeiro, o segundo e o quinto; o terceiro e o quarto, mais curtos, rimam entre si. Isso dá ritmo, é ótimo para fazer algumas brincadeiras. Aprendi na Playboy americana. Claro que o autor lá se valia do limerique de uma forma maliciosa. Mas aí eu pensei: posso brincar com isso de outra maneira. A idéia é ressaltar uma coisa que é o contrário do que penso, e a criança, que não é nada boba, vai entender direitinho. Olha este exemplo aqui:

“Quem pensa que eu sou uma ogra
No seu pensamento malogra.
Língua bifurcada?
Só quando enfezada.
Porque eu sou mesmo é sogra.”

A senhora é escritora de sucesso, foi pioneira na televisão e uma guerreira do livro. Qual é, na sua visão, a grande figura feminina da literatura brasileira? Capitu e Machado de Assis que me perdoem, mas é a Emília, do Monteiro Lobato, por sua impertinência e sua independência. Ele conta que, quando estava ali, formatando seus textos, a Emília ficava ao seu lado, dando palpites, cobrando. Um dia ele perguntou: “Quem é você, afinal?” Ela respondeu: “Eu sou a independência ou morte”. ©

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