O mais conhecido autor moçambicano de todos os tempos transita com graça pela poesia e pela prosa, mostrando a força de uma condição que denomina “estar” escritor. Muito arraigado às suas origens, consegue transmitir a leitores das mais diversas nações o vocabulário, a cultura, as angústias e as alegrias de Moçambique, tornando universal um dos países mais pobres do planeta. Não é apenas a incrível qualidade da literatura inventada pelo escritor, nascido em 1955 e batizado António Emílio Leite Couto, que surpreende: sua aparência, o nome adotado e a profissão também. Mia é filho de imigrantes portugueses que foram residir em Beira e, nas inúmeras palestras que ministra mundo afora, o público muitas vezes aguarda uma senhora negra com vestes multicoloridas. Eis que surge um homem branco, traços europeus, óculos, terno. Sua inventividade é de longa data: aos 3 anos de idade, em função da paixão por gatos, criou para si mesmo o apelido que até hoje usa. Poeta - é assim que ele se define - continua trabalhando no campo da biologia, área em que se formou. De qualquer forma, coleciona vários prêmios literários internacionais, inclusive um no Brasil: a obra O outro pé da sereia ganhou, em 2007, o 5º Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura como melhor romance publicado em língua portuguesa. Aos 14 anos, publicou os primeiros poemas, Notícias da Beira. Desde então, as letras vão saindo magicamente de seus dedos. Ele trafega por um tipo de realismo fantástico que remete a Gabriel García Márquez, mas com raízes muito bem plantadas na realidade de sua região. Outras vezes, faz lembrar Guimarães Rosa, pela criação incansável de neologismos. Brincações, desconsigo, choraminhices, noitidão, impossível não entender o que querem significar e maravilhoso perceber como é possível poetizar a prosa com palavras inventadas. Aliás, detalhe curioso: inúmeras vezes elas vêm à sua cabeça, e ele as anota em pedacinhos de papel que vai amontoando nos bolsos das roupas. Em algum momento, se encaixam nas frases sempre bem-lapidadas de sua literatura. Outra importante característica do autor de Venenos de Deus, remédios do Diabo é seu engajamento político. Lutou contra Portugal pela independência de sua pátria (ocorrida há pouco mais de três décadas) atuando na política e no ensino, sem pegar em armas: a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) só permitia isso à população negra. Em nosso país, às suas obras, a editora acrescenta um glossário ao final para que se compreendam os vocábulos típicos do português de lá, que tornam seus livros ainda mais interessantes. O fio das missangas, acaba de ser lançado por aqui, trazendo 29 contos entrelaçados como miçangas ao redor de um fio, revelando muito das falas do homem de sua terra e demonstrando mais uma vez a proximidade e admiração declarada deste moçambicano pelo universo do autor de Grande sertão: veredas. Mia se revela sempre em produção. Nas respostas dadas nesta entrevista, realizada por e-mail antes de ele sair a campo isolado para uma pesquisa biológica, utilizou sua forma peculiar de usar a língua, mantida nas linhas a seguir, também sem adotar as regras do novo acordo ortográfico.
Dizem que você mesmo criou o curioso apelido Mia. Sim, por causa da minha relação com os gatos. Contam meus pais que eu dormia com os bichos como se fosse um deles. Certa vez, proclamei que queria ser chamado de Mia. Meus pais aceitaram e talvez tenha sido esse meu primeiro acto de ficção. Tinha, talvez, uns 3 anos de idade.
Como sua família foi para Moçambique? Meus pais emigraram do Norte de Portugal no início da década de 1950. Fixaram-se numa pequena cidade no centro do país, Beira, e ali tiveram seus três filhos. Eu sou o do meio. Meu pai migrou por razões políticas – na altura, Portugal vivia uma ditadura fascista, e ele foi objeto de perseguição política.
Como é seu cotidiano? Sou biólogo de profissão e grande parte do meu tempo é passado em trabalho de campo, na floresta e na savana. No mais, sou casado com Patrícia, que é médica. Tenho três filhos: Madyo, Luciana e Rita. Os dois primeiros já saíram de casa. E vivo em Maputo, capital de Moçambique.
Sua primeira obra foi escrita aos 14 anos. Qual foi a repercussão? Ela marca minha decisão de viver o mundo por via da poesia, a necessidade de poetizar a vida. Não é apenas um livro, é uma declaração de fé numa crença que não tem nome, senão o desejo de estar disponível para ser encantado.
Você acompanha a literatura brasileira, poderia citar autores preferidos daqui e também de seu continente? Acompanho mal a nova literatura brasileira, mas posso citar como meus preferidos Adélia Prado, Manoel de Barros, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Na literatura africana, há vários nomes expoentes, como o nigeriano Amos Tutuola, os angolanos José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e, já bem conhecido, o sul-africano J. M. Coetzee. Também em Moçambique temos grandes autores, como os poetas José Craveirinha e Rui Knopfli. Mundo afora, é preciso citar Anton Tchekov, Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. Brasil e Moçambique são países colonizados por portugueses, que falam a língua portuguesa, com uma grande mistura de raças e povos.
Qual a nossa afinidade mais marcante? Existe uma afinidade de que pouco se fala e que é a religiosidade, um sentimento de crença muito marcado pelos sistemas religiosos africanos. E também o modo como esses sistemas se permeabilizaram e deixaram-se mesclar com a religiosidade católica. Essa marca é para mim mais funda e duradoura que a língua. O Brasil não passou pela experiência de guerra pela independência, ao contrário de Moçambique.
Quais marcas permanecem nos moçambicanos? Há coisas que creio que resultaram positivamente pelo facto dos moçambicanos terem resolvido dentro de si sua relação com o ex-colonizador. Houve uma luta armada que criou terrenos bem distintos de afirmação e nos libertam da necessidade de confronto com o outro. Teria sido diferente se um filho de portugueses tivesse, em solo moçambicano, proclamado o grito do Ipiranga.
Existe alguma obra sua que você considere mais especial do que as demais e, uma vez que transita entre diversos gêneros, há alguma com a qual tem mais afinidade? Meu gênero é a poesia. Sou um poeta que escreve histórias e que se realiza na prosa. Meu romance Terra sonâmbula foi redigido no final da guerra civil no meu país e sua gestação marcou-me profundamente. Eu acreditava que não seria possível escrever um livro que falasse da guerra enquanto ela estivesse decorrendo – apenas depois, no momento da paz, quando os fantasmas da violência estivessem adormecidos. Mas sucedeu que fui visitado, noite após noite, pela urgência da escrita. Eu estava, sem o perceber, a aplacar os demônios interiores que a violência da guerra haviam despertado em mim.
Qual dos gêneros é mais difícil? O infantil, sem dúvida. Porque não sei pensar esse gênero e me custa acreditar que se escreve para crianças. A idéia de que elas pedem uma escrita simplificada é uma tentação fácil, mas profundamente arrogante. Nessa escrita, percebemos que não sabemos falar com a infância que ainda vive em nós. Tanto o Brasil quanto Moçambique vivem situações tristes em diversos aspectos, ainda mais no que diz respeito a infância e educação.
Você acredita que haja alguma forma de a literatura ajudar na transformação da realidade nacional? Acredito que a literatura pode ajudar a manter vivo o desejo de inventar outra história para uma nação e outra utopia como saída. Não que eu tenha ilusão sobre o poder da literatura, mas a escrita literária pode, em certos momentos, ter funções de terapia coletiva. Regresso ao caso moçambicano do período pós-guerra. O que aconteceu foi uma mesma espécie de amnésia coletiva. Ninguém se recorda de nada do que aconteceu. Foram 16 anos de guerra fratricida, 1 milhão de mortos, mas ninguém quer, hoje, relembrar este tempo de cinzas. Trata-se de uma estratégia de não despertar fantasmas mal resolvidos. No entanto, é triste não termos mais acesso a esse tempo, perdermos parte de nossa história recente nos faz sermos menos nós mesmos. É aqui que a literatura pode ter função resgatadora. Pode permitir acesso, fora de sentimentos de culpa e de dedos acusatórios.
Como é seu processo criativo? Há alguma preparação especial para iniciar uma obra? Não tenho ritual. No fundo, tenho para mim que a escrita não pode ser resumida ao seu lado visível, que é quando nos sentamos com caneta e papel ou com computador.
Houve algum evento ou pessoa que despertou sua vocação literária? Meu pai é poeta. Mais do que isso: vivíamos a poesia, mais do que líamos. Recordo as vezes em que, devido a uma certa desconfiança, mandavam-me fazer os deveres de casa no local de trabalho dele, que era um armazém obscuro dos Caminhos de Ferro, na pequena cidade colonial da Beira. Doía-me muito ver meu pai, um poeta, ali, naquele recanto poeirento e penumbroso. Mas, ali mesmo, naquele local sombrio, eu aprendi uma das mais importantes lições de toda minha vida. Meu pai, para meu espanto, se apressava muito que eu desse despacho nos deveres. Demoras?, perguntava ele, inquieto. Mal eu pousava a caneta, ele me pegava pela mão e me levava para a luz, para o descampado. Caminhávamos por entre os trilhos, os carris ferrugentos, e ele passeava por ali garimpeirando pelo chão, à cata de quê? O que procurava ele entre sujidades e poeiras? Procurava pedrinhas coloridas, dessas que tombavam dos vagões, e trazia na concha das mãos como se tivessem vida e carecessem de aquecimento. Lá fora estrondeava a guerra colonial e o mundo se rasgava. Minha mãe recebia em casa aqueles lixos brilhentos e muito ralhava com ele. As pedras voavam pela janela, meu pai se internava pelo corredor num desmaio de penumbra. Lembro-me de ter interpelado depois de uma dessas zangas maternas. “Pai, tu também és atrasado mental?” Eu hoje agradeço ao meu pai me ter ofertado essa cumplicidade, esse outro pai que nascia dele quando se tornava cúmplice, me esgueirava dos meus deveres e saltava para a desobediência. Meu pai se convertia em outro menino, e eu ainda hoje encontro inspiração nessa habilidade e vou pela linha férrea a descobrir encanto e encantamento na busca desses brilhos do chão.
Houve algum evento ou pessoa que despertou sua vocação literária? Meu pai é poeta. Mais do que isso: vivíamos a poesia, mais do que líamos. Recordo as vezes em que, devido a uma certa desconfiança, mandavam-me fazer os deveres de casa no local de trabalho dele, que era um armazém obscuro dos Caminhos de Ferro, na pequena cidade colonial da Beira. Doía-me muito ver meu pai, um poeta, ali, naquele recanto poeirento e penumbroso. Mas, ali mesmo, naquele local sombrio, eu aprendi uma das mais importantes lições de toda minha vida. Meu pai, para meu espanto, se apressava muito que eu desse despacho nos deveres. Demoras?, perguntava ele, inquieto. Mal eu pousava a caneta, ele me pegava pela mão e me levava para a luz, para o descampado. Caminhávamos por entre os trilhos, os carris ferrugentos, e ele passeava por ali garimpeirando pelo chão, à cata de quê? O que procurava ele entre sujidades e poeiras? Procurava pedrinhas coloridas, dessas que tombavam dos vagões, e trazia na concha das mãos como se tivessem vida e carecessem de aquecimento. Lá fora estrondeava a guerra colonial e o mundo se rasgava. Minha mãe recebia em casa aqueles lixos brilhentos e muito ralhava com ele. As pedras voavam pela janela, meu pai se internava pelo corredor num desmaio de penumbra. Lembro-me de ter interpelado depois de uma dessas zangas maternas. “Pai, tu também és atrasado mental?” Eu hoje agradeço ao meu pai me ter ofertado essa cumplicidade, esse outro pai que nascia dele quando se tornava cúmplice, me esgueirava dos meus deveres e saltava para a desobediência. Meu pai se convertia em outro menino, e eu ainda hoje encontro inspiração nessa habilidade e vou pela linha férrea a descobrir encanto e encantamento na busca desses brilhos do chão.
Você pretende, ou gostaria de, um dia viver apenas de literatura? Mesmo que pudesse, e talvez agora eu já possa, não queria viver exclusivamente da escrita. É vital para mim ter esta dispersão de atividades, poder fazer coisas tão distintas e manter janelas abertas para a ampla diversidade da vida. Eu “estou” escritor, duvido que “seja” escritor.
Não dá para não falar do acordo ortográfico. Qual é sua opinião? Não sou contra, mas também não milito a favor. Creio que em Portugal houve reações nervosas e crispadas porque, devido a um falso debate, alguns acreditaram estar a prescindir do patrimônio fundador da sua própria identidade a favor do Brasil. Eu acredito que se deve discutir os verdadeiros fatores que nos afastam – e os principais fatores do nosso afastamento não são de ordem lingüística. São de natureza estratégica, das opções políticas dos nossos governos. Os livros brasileiros são lidos sem nenhuma dificuldade em Moçambique, e os moçambicanos são lidos no Brasil sem que a grafia diferente perturbe.
Como se deu o convite para compor a letra do hino de seu país, junto com outros autores? Samora Machel, o primeiro presidente de Moçambique, pensou que era preciso mudar a letra de um hino que tinha sido concebido em período da revolução socialista e marxista. Um novo que servisse, como ele disse, de lençol e sombra para todos os moçambicanos. Ele convocou à maneira da guerrilha um grupo de poetas e músicos, fechou-os numa casa e disse: vocês têm uma semana para produzir um novo hino nacional. Nós produzimos diversas alternativas. Anos mais tarde, quando se introduziu o pluripartidarismo no país, alguém se lembrou de que havia esse manancial de propostas. E assumimos como criação colectiva aquele que é o novo hino nacional.
Você está em produção literária no momento? Estou sempre em produção, mesmo que eu não tenha consciência clara disso. Mas, no caso, estou há três anos laborando num novo romance. Mas realmente, e sem que isso seja uma pose de afectação, não sinto que posso levantar o véu dessa história. Por fim, cultura é... Um modo de sermos quando todo o resto nos nega. ©
Acesse a REVISRA DA CULTURA NO Site: http://www2.livrariacultura.com.br/culturanews/rc19/index2.asp?page=entrevista
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