Em movimento inédito no mercado editorial brasileiro, a obra completa de Jorge Amado, escritor que influenciou toda a cultura nacional, será relançada aqui e no exteriopor Mônica Rodrigues da Costa
Um empreendimento inédito no mercado editorial brasileiro ultrapassa as fronteiras literárias com uma indiferença salutar ao cânone e lança novamente em todo o país a obra de Jorge Amado – o Roberto Carlos da literatura brasileira, o nosso rei – com festas e flores. Em outras palavras, a partir de uma grande campanha publicitária, com palestras, exposições fotográficas e filmes, site bilíngüe na internet e shows e homenagens que incluem Chico Buarque, Caetano Veloso, Nana, Dori e Danilo Caymmi, um suplemento para crianças e capacitação para professores em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Salvador e Belo Horizonte. O feito é da Companhia das Letras, toda concentrada nesse megaevento que ocorre de março deste ano até 2012, ano do centenário de nascimento do escritor. De acordo com o editor da casa editorial, Luiz Schwarcz, o relançamento da obra do baiano está “à altura de Jorge Amado. Sua obra ultrapassa os limites da literatura, porque ele influenciou toda a cultura brasileira. O trabalho de divulgação da obra de Jorge Amado está sendo construído em longo prazo e é voltado para a formação de novos leitores. Envolve estímulo a crianças e jovens, com concursos e premiações dos melhores trabalhos sobre o autor para que sua obra seja valorizada como merece”.
Schwarcz contou que foi autorizado pela família Amado a dirigir também as publicações internacionais de seus livros a partir das edições paulistanas. Bem cuidadas graficamente, com revisão primorosa, os livros trazem prefácios de artistas célebres no Brasil e no mundo: José Paulo Paes, João José Reis, Peter Fry, Nelson Pereira dos Santos, Tatiana Belinky, José Saramago, Mia Couto, entre outros. Os primeiros volumes publicados são A bola e o goleiro (de 1984, para crianças, ilustrado por Kiko Farkas), Dona Flor e seus dois maridos (de 1966, que vem acompanhado de um caderno de imagens do filme e da série televisiva homônimos), Capitães da areia (1937), com posfácio de Milton Hatoum, Mar morto (1936), A morte e a morte de Quincas Berro d’Água (1959) e Tocaia grande (de 1984, com posfácio de Roberto DaMatta e caderno de imagens). A Coleção Jorge Amado, coordenada por Alberto da Costa e Silva e Lilia Moritz Schwarcz, traz também o romance Jubiabá (1935) em forma de história em quadrinhos, desenhada por Spacca, que passou uma temporada em Salvador para observar “lutadores de capoeira e os vendedores que trabalham nas ruas para fazer um livro que interesse a públicos de todas as idades”. Trará também um livro inédito, de artigos que o autor escreveu sobre a Segunda Guerra Mundial para um jornal de Salvador, com lançamento ainda em 2008. Para Lilia Schwarcz e Alberto da Costa e Silva, Jorge Amado ensina a compreender o Brasil. “Em uma época em que a mistura de raças era entendida como um grande problema, já nosso autor, nas obras que foi criando, se transformou em um grande defensor da mestiçagem entre brancos, negros, cafuzos, caboclos, mulatos” – escreveram os organizadores na apresentação da coleção. As tiragens dos livros iniciais variam entre 3 mil e 15 mil exemplares, e os preços, de 24 a 51 reais. Tais volumes estão desde março nas livrarias.
João Jorge Amado, 60, escritor como o pai, disse que está contente com a escolha da Companhia das Letras para editar a obra de Jorge, devido à proposta editorial dessa empresa. “Mas as seis editoras que nossa família convidou por meio de uma carta-convite apresentaram a proposta de buscar novas faixas de leitores e um cuidado muito grande com as edições.” João Jorge lança em março o livro Lá ele, o esparro na Bahia. Segundo o autor, trata-se de “um estudo sobre as expressões ou coisas faladas com duplo sentido que têm por objetivo colocar a pessoa com quem se fala em um esparro (embaraço)”.
Influências
Para o dramaturgo e ensaísta paulistano Otavio Frias Filho, autor de Queda livre –Ensaios de risco, diretor de redação da Folha de S. Paulo, todo brasileiro recebeu a marca da prosa de Jorge Amado: “Eu diria que é uma influência que está no ar e atravessa as gerações. De minha parte, acho que fui influenciado ao menos por Capitães da areia, que li, acredito, aos 12 anos – leitura para mim inesquecível. Idem quanto a Gabriela, que devo ter lido quando tinha talvez 16 anos”.
O melhor de tudo é que os leitores aprendem com Jorge Amado, ao mesmo tempo em que se divertem com as aventuras por ele criadas. Para lembrar aqui a idéia do poeta paulistano José Paulo Paes (1926 – 1998), suas narrativas problematizam – e provocam – a prosa nacional, se pensadas sob a perspectiva da estética da ficção, e são lúdicas a ponto de promover o entretenimento do público mais simples, que lê enquanto espera o ônibus. As histórias do criador da saga do cacau estão no coração de leitores de todas as classes sociais – o que é reforçado pelo fato de romances e novelas suas terem se transformado em filmes, telenovelas, seriados. Proporcionar o prazer da leitura é a característica mais importante, segundo o poeta paulistano Frederico Barbosa, diretor do espaço cultural Casa das Rosas e professor de literatura (deu aulas no ensino médio do Logos e em cursos preparatórios para vestibular, como o Anglo), além de autor de Cantar de amor entre os escombros, entre outros. “Esse relançamento chega para romper um velho preconceito contra a ficção de Jorge Amado, contra o best seller e contra – o mais importante – certa elite endinheirada que acha que é pecado fazer arte para ganhar dinheiro. Jorge Amado viveu da literatura, foi um escritor comercial, mas isso não significa que não tivesse domínio de sua obra e não tenha sido um espírito curioso e generoso. Ele não se deixou levar pela narrativa derramada do regionalismo dos anos 30. Foi homenageado por Graciliano Ramos – que tem o estilo mais econômico –, que ele incentivou a publicar seu primeiro livro, Caetés, dedicado a Jorge Amado. Para certos críticos é um desprestígio produzir uma literatura que seja gostosa de ler, que dê prazer.”
O baiano Aleilton Fonseca, autor de Contos cruéis, contou que começou a ler Jorge Amado também na adolescência. “Sou de origem grapiúna (do litoral), passei a infância e a adolescência em Ilhéus, vivi e cresci nos cenários do romance Gabriela. Creio que minha predileção por temas, ambientes e situações populares, por personagens simples do povo, por enredos e vivências de feição interiorana e por narradores que primam pela forma de ‘contar’ a história para envolver o leitor é, em certa medida, resultado de minhas leituras amadianas.”
Fonseca, também co-editor das revistas Iararana e Légua e meia – de literatura e diversidade cultural, editadas na Bahia –, concorda com Barbosa: “Alguns críticos literários faziam-lhe (alguns ainda fazem) restrições estéticas. Paradoxalmente, Jorge Amado sempre foi um autor muito lido, com obra de grande apelo popular. Seus livros constituíram ‘leitura escondida’ de algumas gerações de mulheres ‘de família’. Com a crescente liberação dos costumes e, no Brasil, com a multiplicação dos cursos de letras, sua ficção passou a ser mais referenciada e adotada em estudos importantes. Sua obra é um monumento literário, que exige edições com aparato crítico e iconografia”.
Para Evelina Hoisel, professora titular de teoria da literatura da UFBA e integrante da Academia de Letras da Bahia, o mérito do texto de Jorge Amado está na construção dos personagens, a partir do diálogo entre o erudito e o popular, criando uma teia de relações que não existia antes na literatura brasileira. “Jorge Amado criou um código de representação de valores que passam por seus personagens, que a crítica literária canônica não teve parâmetros para ler, por ser hierarquizante e por privilegiar valores instituídos, da alta e ‘bela’ literatura. Jorge Amado vem rasurar esses padrões”, comenta Hoisel, autora de Grande sertão: Veredas – Uma escritura biográfica (Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2006) e de Supercaos – Os estilhaços da cultura em Panamérica e Nações Unidas.
Perfil do escritor e da obra O sertanejo, o malandro de praia, o fazendeiro, a prostituta, a beata, o comerciante imigrante árabe, os filhos de portugueses e espanhóis, o capoeirista multicor, o homem de bem estão representados na obra de Jorge Amado e desenham o brasileiro sincrético e multirracial. Também estão lá a corrupção política, o combate ao nazismo e aos regimes totalitários, a glosa, o deboche, o sincretismo religioso e as expressões idiomáticas dos nordestinos, especificamente dos baianos, tudo narrado cinematograficamente em tom irônico e consciente, oscilando entre a concisão oswaldiana de um Serafim Ponte Grande e o derramamento lírico das canções populares. Personagens reais transpostos com precisão para a ficção que, agora, revisada à luz da passagem do tempo, constata-se terem contribuído para adensar a literatura nacional. Não é à-toa que o leitor contemporâneo reconhece em sua obra a presença de personagens febris como o Raskólnikov, de Dostoiésvski, ou os olhos entornados machadianos, seja em Gabriela, cravo e canela, seja em Farda fardão camisola de dormir, romances escritos em 1958 e 1979, respectivamente. Jorge Amado nasceu entre Ilhéus e Itabuna, em uma fazenda, e criou romances do ciclo do cacau. Depois, morou em Salvador, viajou pelo mundo, radicou-se em Paris. Foi existencialista, amigo pessoal de Jean-Paul Sartre e um bricoleur, reunindo assuntos e motivos recorrentes na criação literária internacional – seus livros foram traduzidos em mais de 40 países. O poeta e crítico literário Haroldo de Campos (1929-2003), na ocasião de sua morte, em 2001, declarou à Folha de S. Paulo que Jorge Amado foi o maior contador de histórias do país: “Para mim, o que há de mais significativo na obra de Jorge Amado é sua imaginação fabular, sempre capaz de engendrar novos enredos. Nesse particular, sua obra que mais me agrada é A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, em que ele retoma um tema lendário e tradicional. Desde o começo de sua carreira, ele sempre conseguiu pontilhar sua narrativa de traços metafóricos, de um cunho lírico que percorre e dá graça a seus textos”.
Para o escritor baiano Aleilton Fonseca, que também viveu em Ilhéus e é autor de Nhô Guimarães – Romance–homenagem a Guimarães Rosa, além de doutor pela USP, professor de literatura brasileira na Universidade Estadual de Feira de Santana e correspondente da revista francesa Latitudes: cahiers lusophones, a ficção de Amado, além do valor estético formal, é um testemunho etnográfico e sociológico do Brasil. Quem não se lembra da gangue de meninos de rua chamados popularmente na cidade da Bahia de “capitães da areia”, que brincavam e furtavam nas praias que vão do bairro do Cantagalo até a Boa Viagem dessa velha Salvador e que agora comandam o país com os grupos de traficantes de armas e drogas?
“Jorge Amado inventou um novo tipo de romance, a partir da matriz romântica popular e do espírito neo-realista da ficção social de 30, em que história, ideologia, denúncia, aventura e situações prosaicas compõem narrativas que se caracterizam pelo toque épico e lírico, pelo dinamismo do relato, pelas passagens satíricas e cômicas e pela linguagem desabusada do narrador. Amado produziu uma ficção política na época em que foi militante comunista, um aspecto hoje considerado menor de sua obra. Muito além disso, ele criou a saga romanesca do cacau, no sul da Bahia, ‘a terra dos frutos de ouro’, com os desbravadores, fazendeiros, coronéis, jagunços, exportadores e políticos locais, mostrando o contexto do auge e da decadência do coronelismo provinciano e sua lenta superação pela classe média urbana. Amado também criou o romance que valoriza os elementos populares grapiúnas e afro-baianos, incorporando à ficção uma geografia étnico-cultural até então menosprezada pela cultura oficial”, explicou Fonseca.
Diz José Saramago, na coleção que agora se publica, sobre o “gigante” Jorge Amado: “Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro. Uma parte importante do mundo leitor estrangeiro começou a conhecer o Brasil quando começou a ler Jorge Amado. E para muita gente foi uma surpresa descobrir nos livros de Jorge Amado, com a mais transparente das evidências, a complexa heterogeneidade, não só racial, mas cultural, da sociedade brasileira”. ©
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