sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

REVISTA DA CULTURA

Amilton Pinheiro
Conversar com a poeta Adélia Prado é como comer um bolo de milho, acompanhado de um cafezinho “passado na cara do freguês”. Ela transmite a sensação de conversar com seus interlocutores do mesmo modo como prosearia com amigos na beira de uma calçada da pequena Divinópolis, cidade mineira onde nasceu em 13 de dezembro de 1935. Sua “mineirice” não está só no sotaque nem nas expressões de sua região, mas principalmente na visão de mundo, que brota de sua poesia, tor-rencialmente germinada de significados. Para Adélia, a obra de um artista, quando verdadeira, seja de que arte for, tem o poder de revelar a poesia contida no ser das coisas: “Eu não dou conta de pegar o ser de uma rosa, de um rio, de uma passagem, de um rosto. Só quem consegue revelar esse ser das coisas é a arte, que nos mostra a beleza suprema delas.” Assim como no livro Minha vida de menina, em que Alice Dayrell Caldeira Brant relata, sob o pseudônimo de Helena Morley, seu cotidiano, dos 13 aos 15 anos, na Diamantina do final do século 19, a poesia e a prosa de Adélia Prado concebem o inefável das coisas que estão a nossa volta, por meio de um olhar descortinado das miserabilidades humanas do dia-a-dia. Uma outra parte de sua poesia e de sua prosa nos conduzem para a finitude da vida, o grande dilema humano. Tendo perdido a mãe ainda muito jovem, a poeta nunca se desligou da sua cidade natal, assim como sempre manteve a certeza de que nunca teria a pretensão de obter uma cadeira de imortal na Academia Brasileira de Letras (ABL). Para ela, a falta de convicções é um mal da política e da sociedade contemporânea. A entrevista a seguir mostra uma escritora de opiniões fortes, preferências plurais, devotada à arte verdadeira, mas, principalmente, segura de que a consciência do homem de que um dia ele morrerá é o grande motor das suas inquietudes.
A morte e consciência de finitude humana são duas das principais questões que a sua obra contempla. Não acha que a certeza da morte deveria aplacar a falta de serenidade da alma humana? Deveria, se nós não quiséssemos ser infinitos e imortais. Tem até a Academia Brasileira de Letras (ABL) para você virar imortal. Que dizer, você nasce para a vida, não quer morrer. Mesmo a pessoa que deseja morrer, só tem este sentimento porque tem uma vida ruim e queria uma melhor. Por isso, a finitude é realmente um tormento, assim como o tempo. Apesar de sermos finitos, nós intuímos e desejamos o infinito, a vida eterna, que não se acaba, a felicidade, saúde, alegria e beleza. Nós queremos tudo isso. Se não quiséssemos isso, a vida perene não teria a menor importância. Tudo o que fazemos é mascarar a morte. A cultura é uma espécie de defesa contra a morte, uma forma de esquecê-la um pouquinho. Ir ao baile, fazer uma festa, escrever um livro, é tudo empenho para esquecer a existência dela.
A perda de sua mãe, quando ainda era jovem, e de seu pai, refletiram em sua obra. Como tais fatos a modificaram? Da mesma forma que modifica a vida de todo mundo, sendo escritor ou não. Enquanto você tem seus pais, acaba vivendo, de certa forma, numa bolha, como se fosse eterno. Você experimenta o sentido da proteção. Com a perda dos pais, você é confrontado com uma realidade com a qual não quer lidar de jeito nenhum. O inimigo número 1 é a morte. Se você tem um mínimo de consciência, a morte te leva fatalmente ao amadurecimento. Acredito que uma obra, feita depois de uma perda dessas, tenha o mesmo efeito de uma guerra, da fome, da peste. Essas coisas afetam o homem e atingem aquilo que ele produz. A arte não está num patamar desligado da experiência cotidiana. Enquanto nascimento do homem, ela tem a sua letra, o seu timbre, e é afetada pelos fatos, pelos acontecimentos. Então, certamente eu estaria escrevendo outra coisa, não sei.
A figura materna foi a forma que encontrou para dialogar com sua mãe? Fica sendo, mas não é uma intenção. Eu não poderia escrever para dialogar com minha mãe. Isso seria equivocado. O livro, seja sobre o assunto que for, não é escrito para nada. Você não escreve para algo. Não tem uma intenção. Algumas coisas pedem expressão. A arte é expressão pura, não é discurso. Não é para dialogar. Às vezes, até dialoga, mas não foi escrito com essa intenção. Tudo a priori é um equívoco muito grande e quase certeza de fracasso.
Por isso, acha que a literatura engajada já esteja fadada ao esquecimento? O engajamento é isso. “Olha, eu sou um escritor e agora vou contribuir com meu país e, por isso, vou escrever um livro sobre ecologia”. Devo ficar caladinha e não falar a palavra ecologia, porque não é isso que vai mover as pessoas. Agora, se eu der conta de escrever um poema maravilhoso, e as pessoas que o lerem disserem: “Agora eu não quero cortar mais árvores!”, então terei cumprido a missão para a qual me propus, sem ser didática, nem catequista-apostólica. Eu fiz algo que vai levar as pessoas a preservar a natureza, mas a força é da arte, da beleza, enfim, da palavra. Essa coisa de engajamento não, isso deixa para o discurso político, sociológico, para as escolas. A obra de arte não pode ser didática. Didatismo é muito chato. Você vai ler o romance e o autor fica ensinando permanentemente uma coisa, você não agüenta.
Concorda quando os críticos falam que sua obra é impregnada de religiosidade e valorização do feminino? Quanto à religiosidade, não é minha obra não! Toda obra de arte verdadeira – e eu suponho que esteja fazendo arte, isto é, que esteja escrevendo literatura de verdade – tem um fundamento de ordem religiosa, queira o autor ou não. Primeiro, trata-se de uma atividade da vida simbólica, pois a criação artística é da esfera do simbólico. Os procedimentos da fé e da mística também são dessa natureza. Então, estas duas experiências, estas duas atividades têm um fundo comum. Ainda que o autor se proclame agnóstico ou ateu, a obra o contradiz, porque está acima disso e, queiramos ou não, tem esse fundamento de natureza transcendental, que nós podemos chamar de religioso.


Você falou sobre a Academia Brasileira de Letras (ABL)... Tem alguma intenção de mudar de idéia e um dia se candidatar a uma vaga? Não, de jeito nenhum! Só se deixar de ser eu, mudar de pensamento. Não tenho vocação para imortalidade; quero ser sempre estreante. Não quero ser veterana. Não quero esse caminho, essa consagração, porque somos inconsagráveis. Somos precários demais. Eu acredito que essa é uma convicção interna minha, muito interna. Acredito que é uma convicção, meu Deus, é uma convicção! Igual ao outro que diz: “Eu acredito que sou inocente!”

Quando esteve, em 2006, na Festa Literária Internacional de Parati (FLIP), você chamou a atenção por causa de algumas posições políticas, como em relação ao “homem-bomba” e à decepção com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Suas opiniões mudaram? Dois anos é pouco para mudar uma opinião e, além disso, o panorama político do mundo continua o mesmo. A questão do “homem-bomba” se refere exatamente à linguagem política, dos políticos, que não inspira mais confiança porque eles perderam a natureza simbólica. Quando discuti esta questão, naquela ocasião, não entrei no mérito da aprovação ou não do ato, ou que esta atitude deva ser a correta. Mas acredito que um suicida, um terrorista suicida, aja por causa de suas convicções. Podemos discutir se é correta ou equivocada, mas que é uma convicção é e, por isso, causa medo e tem também o poder de convencimento. Com relação ao PT (Partido dos Trabalhadores) foi a mesma coisa. Eu disse que o PT perdeu a carga simbólica, então, perdeu também o poder de motivação social das pessoas. Isto é, aquilo que comove, que mexe com a gente, é o que faz com que eu aja, que a gente aja.

A maioria dos escritores não gosta de falar sobre seus trabalhos de estréia. Como vê hoje seu primeiro livro, Bagagem, de 1976? Eu vejo com a maior alegria. Hoje, eu estava escolhendo uns textos para ler e li com a maior tranqüilidade, como se não fossem de minha autoria. Acho bom demais. Isso me dá uma certeza de que os minhas obras estavam corretas, estavam certas. Eu leio e falo: “É isso mesmo”. Leio como se fosse de outra pessoa. Não tenho preguiça de ler e não digo: “Nunca mais quero ver esse livro”, quero sim. Eu sou leitora das minhas próprias obras, porque, rigorosamente falando, não sou autora delas. Se é bom, é porque é belo, e a beleza não é obra minha. Ela vem de um lugar mais alto. Da parte da alma. Agora eu imitei o Guimarães Rosa (risos).

Falando em escritor, quais são suas influências literárias? Acho que os autores que a gente ama sempre influenciam nossa obra. Não sei de que maneira. Às vezes, você começa imitando. Eu me lembro que imitava aquele poeta mórbido... o Augusto dos Anjos. Seus poemas eram bons de recitar na escola. Tem o Jorge de Lima, Drummond, Guimarães Rosa, que quando descobri foi uma festa que continua até hoje, a Clarice Lispector... Se pudesse, colocaria todos num ônibus e saía por aí. Gostaria de viver na companhia deles, ficar no céu com todos, fazendo chacrinha com eles (risos).

Tem um trecho de um poema seu, Objeto de amor, que diz: “(...) e, mais que perdôo, eu amo”. Quando li este poema, me lembrei de uma frase da esposa de Euclides da Cunha, Ana de Assis, que disse, quando separou de seu amante e depois esposo Dilermando de Assis, “Eu não errei, eu amei”. O amor está acima dos erros? O amor... Agora é minha vez de citar São Paulo [Paulo de Tarso é considerado pelo cristianismo um dos mais importantes apóstolos de Jesus Cristo, e um dos fundadores da religião], que diz: “O amor cobre a multidão dos pecados”, e afirma que o amor é “salvístico”. Agora, o que não é amor, pode ser a maior boa ação que você fizer, é lixo. Se você faz uma grande boa ação sem amor, melhor é não fazê-la. Aquilo que é feito com amor, ainda que errado, tem um olhar compassivo de Deus, porque é amor. E o que é amor? É aceitação, é sentimento de acolhida, de perdão, aí vai tudo junto.

Como foi a experiência de passar um tempo sem escrever? Foi exatamente um período de deserto, de esterilidade. Eu me questionava: “Será que nunca mais vou ser capaz de escrever um verso, uma linha?”. Então, foi um completo deserto, mas também uma carga muito grande de renovação. É um sofrimento que eu desejo para todo mundo, porque sem isso você não avança.

Nunca ter escrito um romance a frustra de alguma forma? Não. Tem muito tempo que estou com alguns poemas e algumas idéias. Viver é tão bom também e tão importante que, se a coisa cair, cai do céu, é um presente, mas, se não cair, não tem importância. Eu penso: “Que bom se eu fizesse um romance, quem me dera”. Mas não passa disso, porque não tenho poder sobre isso. Se eu tivesse, já teria uma pilha de livros. ©

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